Meus tratados sobre a vodka e o makhourá são trabalhos de pouco valor, porém algumas percepções que hoje me aparecem com grande luminosidade já se encontravam veladas no texto. Chegando a NY, no entanto, enquanto meus colegas se entusiasmavam com o uso da cocaína (tão rico em simbolismos que não estenderei o comentário nesse post), tornei-me um ávido bebedor de café. Café é uma droga bem bacana. Quase não te faz mal e produz efeitos em distintas dimensões do psique humano, podendo ser vastamente apreciado. Para aqueles a quem falta a elegância e a calma para conhecer seu próprio organismo e identificar as sensações que afloram lentamente nele quando ingerimos qualquer substância que nosso corpo consiga processar, de pão de forma à heroína, o café é somente um estimulante que evita o sono e a preguiça, além de ser amargo o suficiente para que se possa tomar com muito açúcar, o que uma espécie de recalque impede normalmente (processo semelhante ocorre com o azedo do suco de limão). Porém para aqueles que têm a serenidade e o refinamento para apreciá-lo, além de uma das melhores bebidas quentes consumida pela humanidade (que deve, naturalmente, ser degustada sem a adição de açúcar), trata-se de um potencializador da atividade cerebral, biologicamente falando e da profissão de fé da sabedoria, socialmente falando. Além disso, o café dá vida ao sistema circulatório, ânimo e força para uma pessoa cansada.
O café, objetarão alguns, não sem alguma ponta de razão, não pode ser considerado exatamente um paraíso artificial. Embora dê ânimo e permita ao corpo trabalhar em capacidade plena, não nos fornece os instrumentos para a fuga, que Baudelaire elogia no vinho e acusa no haxixe, no que só posso considerar um lapso de moralismo. Ao contrário, o café nos permite, e aí reside seu maior trunfo, experenciar o mundo com fria objetividade, sem, no entanto, jogar-nos para fora dele como uma primeira intuição pode julgar necessário.
Admitida a crítica dos apressadinhos, sigo o relato. Em novembro 1959, conheci uma bela garota hispânica cujo nome, Juanita, ainda ecoa nos mais obscuros recônditos dessa alma cansada. Passávamos horas no meu apartamento na 22.a com a 5.a, dedicados simplesmente a servir um ao outro. Juanita trouxera do México uma planta, que, seca e moída, fumávamos à exaustão. Por muito tempo a maconha serviu para mim como mero tempêro para intenso prazer conjugal. Sim, pois entre um baseado e outro, intercalávamos o amor carnal e o prazer palatal, ambos intensificados pela mágica canabinal. Naquele mês e pouco de frio e neve, meu apartamento foi seguramente o mais caloroso refúgio de todo o hemisfério setentrional. Um dia, Juanita sumiu. Procurei-a por toda a parte e nada de mi cariño. Deixou para trás, no entanto, aquela sacola verde e laranja cuja função ainda preservo. Preservo, pelo ato implícito de lealdade de uma alma livre, à qual o calor e o acolhimento oprimiam, mas que me deixara aquela bolsa como sinal de seu constrangimento em partir.
Reconhecendo o fim, voltei pouco a pouco aos velhos círculos, porém nunca mais deixei de lado aquela verde delícia. Entretanto, alguns de seus efeitos eram bastante indesejáveis. Em tempos de maiores agruras, a droga me deixava particularmente apático, quando não me dava sono simplesmente. Além disso, embora a música tivesse ganhado contornos novos e antes inimagináveis, fui perdendo aos poucos a capacidade de sentar e ler por horas a fio (e como mais aproveitar a literatura?).
Em 1961 meu primo Robert chegou a NY. Recebi-o em casa e lá ele fumou seu primeiro baseado. Bobbie realmente tomou gosto pela coisa, mas aos seus 20 anos tinha uma energia impressionante e ficar em casa ouvindo jazz não parecia dar-lhe qualquer prazer. No afã de acompanhá-lo, um dia decidi deixar para fumar o baseado só nas altas horas da madrugada. Fiz então um café forte (um colega acabara de trazer um café do Brasil) e fui chamar Robert para sairmos. Porém, o inquieto rapaz tinha um baseado prestes a ser aceso em mãos. Até então nunca me ocorrera juntar o café à maconha. Entretanto, ao simplesmente intuir a possibilidade, antes mesmo de consumir qualquer um deles, já pressenti o sucesso da junção. Sim, era claríssimo. Por um lado a maconha adicionava mágica e vida aos elementos que o café tornava meros objetos. A maconha lhes dava uma história e um significado último e a realidade passava a pulsar em toda sua dureza e encanto. Ao mesmo tempo, o café combatia a apatia e o sono das folhas da Juanita. A sinfonia do mundo que se revelava a cada trago podia agora ser apreciada com a austeridade merecida, ser encarada nos olhos sem se perder numa desesperada e deliciosa risada, resultado tão comum dos esforços mais profundos de compreensão no momento da viagem.
Os efeitos psicológicos não são, porém os únicos encantos da combinação. O café quente e amargo mostra-se um perfeito bálsamo para contrabalancear os efeitos, duros na garganta, da densa fumaça que se deixa inalar. Aliás, fumaça e bebidas quentes são sempre uma combinação bacana.
Há quem faça associação imediata entre a canabis e o bucolismo. Nada mais precipitado e questionável. Se, por um lado, a maconha permite que apreciemos todas as belas coisas e tornemos a estética um ponto nevrálgico da ética, o que leva a estupefação frente às grandiosas paisagens que transcendem a pontual existência humana, é absolutamente precipitado tornar essa relação exclusiva. A paisagem urbana é cheia de fascínios e mistérios. Morte, vida e sons.
Se Bobbie me deve por ter-lhe apresentado a maconha (o que, fiquei sabendo, ele adotou como hábito para com seus amigos), eu devo-lhe, pelo incidente relatado, a descoberta. Nunca esqueci Juanita, porém certamente esqueci de muita coisa por causa dela...