quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Alma de botequim

Noel Rosa. O pai de todos os sábios do país foi, além de músico, um dos maiores pesquisadores da alma do brasileiro. Eu diria até que ele foi muito mais esperto do que Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado. Ao invés de escrever livros chatos e pesados (em kilogramas mesmo), Noel nos brindou com grandes sambas. Melodias e letras ricas, que formaram as idéias toda uma geração.

Sem muito mais me estender em elogios ao poeta da vila, passo a um estudo de caso, uma de suas odes ao cidadão brasileiro: "Conversa de Botequim". A música foi composta também pelo sábio Vadico. Vamos lá.

Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol

Olhe lá, logo na primeira estrofe, Noel já nos avisa que vai falar dos principais componentes da vida do brasileiro. A saber, a boa média nada mais é do que referência à política do café-com-leite, que moldou nossas instituições políticas. Depois, o futebol, o garçom e a ressaca, pois obviamente esse cara que entrou no botequim devia vir de uma grande noitada.

Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão,
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas,
Um isqueiro e um cinzeiro

Não há consenso na literatura se Noel buscava de fato explicitar as contradições da luta de classes, afinal todo grande boêmio tem uma preguiça danada de promover uma revolução. De toda forma, o sambista já canta aí a relação do homem cordial (sim, ele falou antes disso do que o pai do Chico) que não aceita o regime careta do capitalismo. O cara já pede uma grana emprestada, faz um fiado e tenta dar aquele jeitinho. Noel construiu um tipo ideal weberiano fundamental para a compreensão do brasileiro: o malandro de ressaca, enchendo o saco do garçom e já pedindo o fiado com a maior dignidade.

Seu garçom faça o favor de me trazer depressa...

Ele já canta o progresso, que não pode mais esperar!

E, por fim, ficamos com a conclusão desse samba, que mais parece um tratado da alma do brasileiro:

Telefone ao menos uma vez
Para três quatro quatro três três três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro,
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente
Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol

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